terça-feira, 11 de junho de 2013

Propriedade privada e Propriedade intelectual: Uma análise dos fatos

Como Hans-Hermann Hoppe enfatizou na introdução do livro A Ética da Liberdade, de Murray Rothbard, os estudos relacionados à ética e economia foram, por séculos, se distanciando uma da outra se tornando aparentemente desconexas. Para os economistas, o conceito de propriedade soava normativo demais e para os filósofos políticos propriedade tinha um requinte de economia mundana.

Os austríacos entendem que a origem da propriedade privada se deu [1] para resolver conflitos sobre uma questão inevitável, a escassez. Com a falta de abundancia plena, o controle exclusivo de um indivíduo sobre espaços e objetos físicos (desde que sob as condições de apropriação original ou voluntária), mostra-se imprescindível tanto do ponto de vista econômico quanto ético.

 Nesse contexto, o desenvolvimento do estado no mundo, que passou por diversas formas de monarquias, ditaduras, liberalismo clássico e democracias, invariavelmente depende (em maior ou menor grau) do controle de propriedade, que em princípio seriam de direito de indivíduos.

No cenário atual, a social democracia ou estado de bem-estar social se estabelece por boa parte do mundo tornando o conceito de propriedade privada ainda mais irrelevante. Esse formato estatal permite alguma liberdade (de propriedade privada dos meios de produção) num ambiente extremamente regulado, mas o suficiente para os programas de welfare state serem desenvolvidos e aparentemente livre o bastante para reeleger um político ou evitar revoltas populares.

Usando como exemplo os Estados Unidos, vejamos a evolução desse país nos últimos 200 anos: Uma nação que durante praticamente todo o século XIX foi considerada extremamente livre. O estado tinha o tamanho bem reduzido, impostos diretos não existiam e indivíduos povoaram essa nação com grande incentivo vindo pelas questões atreladas a liberdade, por consequência, com reais direitos de propriedade.

O século posterior foi marcado pela criação do Federal Reserve, ascensão do movimento intervencionista através de políticas keynesianas, regulações de todos os tipos, fim do padrão-ouro, etc. Ou seja, um novo modelo político e econômico. Em vez de criar-se um novo nome para essas mudanças,o termo capitalismo teve seu significado alterado, facilitando ainda mais a desconsideração em relação a importância do respeito a propriedade privada. Como do outro lado tínhamos regimes totalitários e socialistas, era fácil redefinir os termos de capitalismo e liberdade com essa comparação tão extrema. Menos livre-mercado foi visto como necessário e os Estados Unidos continuaram sendo o grande exemplo de nação capitalista e com sólidas bases na liberdade.

Os austríacos (principalmente Mises e Hayek) passaram a atingir maior relevância no século XX, através de uma abordagem apriorística da economia, analisando perfeitamente o movimento socialista e sua característica anti-humana, assim como as consequências de qualquer tipo de intervenção na economia. Ou seja, a ação humana. Mais tarde, nas últimas décadas, pensadores libertários como Stephan Kinsella e Jeffrey Tucker passaram a abordar um tema relativamente novo: a propriedade intelectual e o repúdio a esse direito nada natural.

Por outro lado a grande pensadora Ayn Rand, grande influência no crescimento do libertarianismo, via na propriedade intelectual a base de toda filosofia objetivista e de verdadeiro livre-mercado. Conforme analisado em um outro texto meu (clique aqui), há muitas incoerências na defesa objetivista à propriedade intelectual.

Certamente, não é por essa defesa à propriedade intelectual que muitos se tornaram libertários, mas sim por previsões sobre o colapso moral e econômico que ela já dizia há mais de 50 anos. Sua análise “visionária” foi o grande legado para busca da liberdade. Mas o que aconteceu de lá para cá, para que suas previsões se confirmassem?

Regulações, taxação, welfare state, monopólios da segurança, leis, etc. são resultados da exploração da propriedade privada, não da intelectual, que por sinal não sofreu nenhum tipo de “abandono” por parte do estado.  A fonte de riqueza estatal passa, na maioria dos casos, pela extração de uma propriedade privada alheia enquanto que a preservação da propriedade intelectual só acontece sob vias estatais, alem de ser outra fonte de recurso financeiro dos parasitas que Ayn Rand tanto desprezava.

A propriedade intelectual é preservada e mesmo assim a situação não é nada agradável, com as previsões de Ayn Rand se confirmando. O cenário "parasitário" na sociedade descrita por Ayn Rand em Revolta de Atlas é muito preciso, mas por violações reais de propriedade.

Portanto, não haveriam os objetivistas, a necessidade de rever a importância da propriedade intelectual, que inclusive justifica o domínio de propriedade real (privada) de terceiros? Ou seja, como defender a liberdade e menos estado se os fatos mostram que as características expansivas e de retrações dos estados dependem quase que 100% de questões que dizem respeito à propriedade privada?

Não há perda real com “subtração” do intelectual alheio. Pelo contrário, a capacidade cognitiva atrelada às referências e experiências diversas é que nos geram aprendizados. Como desenvolver a razão sem referencias? O próprio ato de aprender a falar e escrever advém de terceiros. Essa também é uma forma de adquirir o intelecto alheio. Portanto, fica claro que a defesa randiana é puramente utilitária [2] ao dar todo o foco no aspecto da produção.

Através de uma correta análise do conceito de propriedade a Escola Austríaca de Economia deixou diversos legados como a teoria dos ciclos econômicos e calculo sobre o socialismo e a praxeologia como um todo, enquanto que nenhuma escola de economia teria sucesso em elevar a propriedade intelectual como base para análises e princípios sólidos, condizentes com o mundo real.

Por fim, como disse Jeffrey Tucker: patentes e direitos autorais são criação do estado.




[1] – A ação de apropriar-se de algo, certamente envolve questões racionais e que vão além do instinto animal. A origem da nossa racionalidade e capacidade cerebral (ainda com muitos pontos a serem descobertos) é irrelevante no momento em que toda essa estrutura de propriedade privada se desenvolve, evitando conflitos e promovendo a paz.


[2] – Não estou afirmando que direitos de propriedade intelectual geram mais valor para a sociedade, mas sim que esse pode ter sido o motivador de Ayn Rand.

2 comentários:

  1. No meu entender, cada vez mais a informação se torna uma parte mais importante dos bens de capital. Só para exemplificar, alguns dos bens de capital mais importantes hoje em dia são basicamente softwares.
    É fácil entender que o valor de um bem de capital é inversamente proporcional à abundância dele no mercado. Isso é especialmente verdade na área da propriedade intelectual.
    Se qualquer bem de capital custa caro para ser adquirido, e no entanto o lucro que ele proporciona é pequeno (excesso de oferta do produto resultante), ele deixa de ser um bom investimento.
    Por que uma empresa investiria uma fortuna no desenvolvimento de um software capaz de melhorar a produtividade, se na ausência da proteção da propriedade intelectual, o mesmo software poderia ser copiado de forma gratuita pelos seus concorrentes?
    Porque a Ayn Rand gastaria anos escrevendo seu romance se a obra poderia ser reproduzida livremente?
    No entanto assim como a proteção à propriedade privada de bens de capital pode ser abusada com a formação de cartéis ou monopólios, a proteção à propriedade intelectual também pode ser abusada ao permitir a apropriação de informações que não são resultado de nenhum investimento (por serem de conhecimento público ou genéricas demais). Tanto num caso como no outro a possibilidade de abuso não desmerece o valor do conceito.
    No meu entender, prescindir das leis de proteção à propriedade intelectual é tão danoso à inovação e ao empreendedorismo quanto a socialização completa dos meios de produção.

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    1. "Gil", quanto ao exemplo do software você começa com um equivoco grande ao dizer que a maior oferta para um bem qualquer "deixa de ser um bom investimento". Qual a lógica do mercado, senão a de expor bons e maus investimentos? É certo partir do principio de que empresas quebrariam caso não houvesse proteção de patentes? Acho muito arriscada essa afirmação. Sem dizer do que não se vê como altos custos que as empresas gastam em tribunais, lobby, etc.

      Confesso não entender essa história de "copiado de forma gratuita pelos concorrentes". As milhares de páginas de programação de uma empresa por acaso estão disponíveis por todo lado? No relacionamento B2B contratos são necessários para preservar interesses de maneira voluntária. São necessários e não tem nada a ver com "defesa a propriedade intelectual". A patente é somente uma forma arbitrária de controle sob propriedade alheia, uma vez que se alguém desenvolve algo com os próprios recursos tão bem quanto você, não há "direitos" seus em relação aos meus recursos e pela facilidade que eu tive de "copiá-lo" nem real valor naquilo que você está oferecendo.

      O mesmo para o exemplo da Ayn Rand. Por acaso o seu "poderia" é num hipotético 2013 ou no período real de vida dela? Porque eu suponho que ela tinha um contrato com a editora para impressão e divisão dos lucros, certo?

      Qualquer escritor capaz de firmar voluntariamente um contrato com um terceiro para a impressão, distribuição e venda de livros pode ser capaz de gerar lucro. A versão online de um livro não é a mesma coisa que o livro físico. Coisas que os objetivistas se sentem na obrigação de ignorar, pois não podem entrar em desacordo com a legislação vigente. O bem real é totalmente distinto. Um tem capa, páginas de papel, você guarda na estante. O outro, você guarda num HD, abre virtualmente no seu device e toda a projeção e tecnologia por trás disso são criações da Apple, Samsung, Sony, etc.

      Quantos aos motivadores da Ayn Rand ter escrito eu não sei... provavelmente o lucro e a possibilidade de espalhar as idéias dela. Aonde entra a ironia. Eu não posso copiar o livro né? Nem com os meus recursos? E gravar? Eu posso fazer isso e vender para pessoas cegas ou que não leem sem pagar nada a ela? E dar uma palestra sobre minhas percepções do livro? Leitura em conjunto? Esses exemplos mostram que a defesa objetivista à propriedade intelectual é uma análise utilitária e arbitrária que tenta se passar como principio moral na base da porrada.

      Você quer comparar 10 mil anos de civilização com infinitos registros escritos sem nenhuma "defesa a propriedade intelectual" com a socialização completa dos meios de produção? Não teríamos virado o século XX se o socialismo tivesse sido implementado no mundo todo.

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