terça-feira, 19 de março de 2013

Ayn Rand e a Propriedade Intelectual: As incoerências objetivistas


Muitos consideram Ayn Rand como uma das maiores representantes do movimento libertário, mas os conceitos de propriedade e valor na visão da filosofia objetivista (criada por ela) diferem muito do apresentado pela escola austríaca e ética libertária havendo, portanto, muitas incompatibilidades no entendimento do que de fato é ó livre-mercado e também o papel do estado na sociedade.

Em relação à Propriedade intelectual, Rand se mostrava uma ferrenha defensora da sua proteção por parte do estado enquanto que as últimas gerações de libertários (Rothbard, Hoppe, Kinsella, Tucker) refutam a ideia de que a PI é de fato uma propriedade exclusiva de um indivíduo, uma vez que ideias não são escassas. Portanto, nessa visão, não há conflito real sobre a posse dessa propriedade. Quando um aluno aprende de um professor o conhecimento é expandido e não transferido.

Rand, falando sobre patentes e direitos autorais, disse: “a aplicação legal da base de todos os direitos de propriedade: um direito das pessoas ao produto de sua mente” [1] ou até “patentes são o coração e o núcleo dos direitos de propriedade” [2]. Apesar de essas declarações poderem sugerir total defesa de propriedade às criações humanas, ela distingue os conceitos de invenção e descoberta como base para sua defesa à propriedade intelectual.


A arbitrariedade

A definição randiana para invenção é de que se trata de qualquer adaptação/rearranjo de matérias oriunda da mente humana e que resulta em um novo bem tangível ao passo que a descoberta de uma verdade matemática (por mais que seja resultado da mente humana) não é passível de tal proteção.

Nesse ponto, Kinsella nos lembrou que:

“Não é evidente porque tal distinção, mesmo se clara, é eticamente relevante para definir direitos de propriedade. Ninguém cria matéria; apenas se manipula e lida com ela de acordo com leis físicas. Nesse sentido, ninguém de fato cria algo.” [3]


Por que, por exemplo, a descoberta da fórmula E=MC por Einstein não é passível de tal defesa como um produto protegível da mente humana? Um cientista que descobre uma nova propriedade no estudo eletromagnético pode servir de base para a criação de diversos produtos duráveis, que por consequência, serão protegidos por patentes. Não houve apropriação de uma informação que foi “gerada” por uma mente humana? Ayn Rand sugere que sua defesa a propriedade intelectual é moral, mas na verdade é pouco fundamentada e com um grande viés na defesa ao empreendedor, conforme Kinsella identificou isso no seu artigo Inventors are Like Unto ….GODS  

         Alguns objetivistas mais modernos como Andrew J. Galambos defendem o PI ainda mais radicalmente. Não é arbitrário na defesa de um produto da mente, mas apresenta ideias ainda mais absurdas alegando direito de propriedade sobre suas próprias ideias e obrigando seus estudantes a não repeti-las. Nesse contexto o aprendizado e troca de informações entre humanos seria simplesmente inviável.

Internet: A máquina impressora de valores randianos

Ayn Rand analisava o crescente movimento anarco-capitalista com muita crítica [4]. Alegava que o mundo cairia na mão de criminosos e nada mais teríamos senão o caos com a falta de um estado que protegesse, no mínimo, a propriedade.

Nessa ideia de arranjo descentralizado, livre e praticamente anárquico temos a internet. Nos últimos 20 anos a internet se desenvolveu quase que totalmente aparte do ambiente de regulação e controle estatal. Esse ambiente de livre troca de informações e conhecimento seria uma ameaça aos valores randianos e de “livre-mercado” que ela defendia? Provavelmente sim.

Numa discussão em um grupo da Ayn Rand no Facebook, chegaram a afirmar o seguinte:

“A moeda de troca de um escritor é o seu livro, e o valor deste é o que nele está impresso. A moeda de troca do leitor é o dinheiro, e o valor deste é o que nele está impresso. Qualquer um que se apropria da moeda de troca do outro, sem a devida contrapartida, rouba. Qualquer um que copia a moeda de troca do outro, sem autorização do emissor original, frauda. Reproduzir moedas é inflacionar. Inflação é roubo porque confisca o valor de compra da moeda.”

Essa confusa noção de valor sugere que espaços de leitura em livrarias são criminosos? Bibliotecas são os bancos centrais no ambiente intelectual? Deveriam os autores de livros buscarem a proibição desse tipo de compartilhamento de informação ou a “devida contrapartida” existe nesse caso? Vejam, portanto, o quão incompleta é essa definição.

Voltando ao conceito de invenção de Rand, ela afirmou sobre a adaptação/rearranjo como resultado de um novo bem tangível. Como afirmar então que um livro feito de papel e tinta são o mesmo que uma versão eletrônica da obra? A cadeia de desenvolvimento de uma versão eletrônica pirata é totalmente independente e distinta da propriedade pertencente ao autor ou editora de um livro. A legislação referente a P.I. nada mais é do que uma arbitrária tentativa de balancear o mercado através do favorecimento de alguns setores e players.

Afirmar que o valor não está no livro e sim nas ideias expostas nele geram uma grande contradição com o que Rand defendia, uma vez que o conceito de invenção deixa clara a existência de um bem tangível. Defesa de toda forma de propriedade intelectual como qualquer resultado da mente humana é um ponto de Andrew J. Galambos e nesse contexto a troca de informação jamais poderia ser realizada se a defesa do PI fosse invariavelmente necessária, conforme podem ver aqui

A ideia e cópia, como bens não escassos, são justamente aquilo que fazem da internet uma enorme fonte de conhecimento e um meio concorrente ao formato de varejo/comercio tradicional. Se não há nenhuma barreira/dificuldade para reprodução de uma música no formato digital ao invés de um CD, por exemplo, o seu valor não pode ser imposto em todos os formatos nem a ideia de “roubo” pode ser aplicada. Afirmar que alguém roubou a minha namorada, não faz disso um roubo. A ideia de roubo implica em prejuízo de um bem tangível. Nem no caso dos CDs, nem dos livros um bem copiado ou reproduzido gera em perda de riqueza real e tangível por parte do músico ou escritor.

Não menos relevante que os pontos acima, a defesa à Propriedade Intelectual é uma forma coerciva de geração de escassez. Uma pessoa que tem um produto protegido por patente, ou copyright acaba por controlar (mesmo que indiretamente) a propriedade privada do outro.

Conclusão

         Um ambiente livre, sem direitos a propriedade intelectual, não significa que empreendedores não têm mais motivo para empreender nem que qualquer forma de defesa a uma determinada informação ou tecnologia seja protegida. Contratos podem assegurar desde um segredo comercial a um controle de cópia desde que feito de forma voluntária entre duas partes.

         A existência de nova concorrência em diversos setores não é atribuída a um novo formato maligno de fraude (a internet) e sim de novos formatos tecnológicos que fazem um bem escasso, muito mais abundante. Empreendedores podem se adaptar a novos cenários e é isso que deve ser feito. A Apple, por exemplo, em vez de gastar uma fortuna processando a Samsung por copiar seus produtos, poderia usar o mesmo dinheiro para inovar e assim conseguir mais consumidores. O concorrido setor fonográfico, por outro lado, teve desempenho positivo recorde após mais de 10 anos sem aumento nos lucros [5].

A ideia de que o governo é o responsável por proteger essas propriedades é no mínimo ingênuo. Como defender a liberdade e uma economia de livre-mercado na Era Digital?

         A única forma de proteger a propriedade intelectual é através de um grande governo regulador e legislador. Como sabemos, a simbiose governo/empresas, invariavelmente, leva ao favorecimento dos “amigos do rei” devido ao ambiente onde a defesa à propriedade intelectual é totalmente arbitrária e subjetiva e também devido a própria anatomia do estado e sua necessidade de preservação do status quo.

         No fim, só os libertários invocam a não iniciação total a violência como padrão ético, enquanto que a razão randiana é claramente cheia de arbitrariedades.


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[1] Patents and Copyrights – pg. 130
[2] Patents and Copyrights – pg. 133
[3] Contra a propriedade Intelectual – cap. 3
[4] The Virtue of Selfishness
[5] http://www.valor.com.br/empresas/3022956/receita-do-mercado-fonografico-cresce-pela-primeira-vez-em-treze-anos

9 comentários:

  1. Gostei muito do artigo, só faço uma ressalva.

    Utilizar os espaços de leitura em biblioteca, ou livrarias, não é uma boa ideia, pois os livros que lá estão foram comprados por alguém, já ouve a compensação financeira, logo, dentro da visão supracitada de contrapartida, não houve roubo.

    Eu concordo que apropriar-se do que é de outro sem uma contrapartida é roubo, porém, somente no campo físico, jamais no das ideias. O livro que está na livraria pertence à está, que por ele pagou, ou pagará quando vendido (caso da consignação), mas que não deixa de ser sua propriedade. Se esta permite a leitura deste dentro de seu espaço, nesse caso específico, o que ocorre é uma concessão do proprietário do bem físico, não resultante de roubo à quem dela faz uso.

    Ótimo artigo no geral.

    Abraços

    Roberto Barricelli

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  2. Obrigado pelos comentários Roberto.
    Com certeza esse é um tema ainda com muita capacidade de exploração e seus pontos de vista são muito válidos.

    O exemplo da biblioteca foi para confrontar esse conceito de "inflação" que parecia sugerir que se há um livro físico, o conhecimento difundido a partir dessa unidade seria uma fraude uma vez que essa 'autorização do escritor' é bem subjetiva, ainda mais considerando essa 'reprodução de idéias'.

    Abraços.

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  3. Parabéns pelo artigo Guilherme.

    Eu trabalho numa instituição financeira que desenvolve aplicativos e vive através de contratos de propriedade intelectual e segredos comerciais com seus fornecedores. Vemos aqui que temos que nos antecipar à concorrência sempre e não nos baseamos em salvaguarda de patentes, pois é a inovação que nos faz líderes de mercado. Nunca houve aqui coerção pelo roubo de idéias, mesmo porque acreditamos que: "An idea as such cannot be protected once it has been given a material form."

    (Ayn Rand disse: An idea as such cannot be protected until it has been given a material form.)

    Abraços.

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    1. Exato Matheus.
      A inovação não deixa de acontecer por conta da falta de proteção em PI.

      Estou trabalhando em outro artigo que refuta totalmente a ideia que a propriedade intelectual está acima de todo o resto. Cada dia que passa vemos que os objetivistas não estão nem aí para o conceito de propriedade privada e na necessidade do estado de controlá-la,

      Abs.

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  4. Excelente artigo.

    A título de contribuir com o debate, apontando uma posição oposta a do autor, deixo o link para esses três artigos do libertário Sidney Sylvestre, ex-membro do IMB, sobre o assunto:

    http://depositode.blogspot.com.br/2008/06/sobre-propriedade-intelectual.html
    http://depositode.blogspot.com.br/2009/02/nota-sobre-teoria-economica-da.html
    http://depositode.blogspot.com.br/2009/07/mais-do-mesmo-propriedade-intelectual.html

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  5. Obrigado Adriel,
    Vou ler esses textos recomendados.

    O grupo do facebook, Ayn Rand Brasil - Objetivismo já foi local de grandes discussões sobre o tema, mas particulamente uma meia dúzia de pessoas deixam o debate bem difícil.

    Abs.

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  6. Numa discussão em um grupo da Ayn Rand no Facebook, chegaram a afirmar o seguinte:

    “A moeda de troca de um escritor é o seu livro, e o valor deste é o que nele está impresso. A moeda de troca do leitor é o dinheiro, e o valor deste é o que nele está impresso. Qualquer um que se apropria da moeda de troca do outro, sem a devida contrapartida, rouba. Qualquer um que copia a moeda de troca do outro, sem autorização do emissor original, frauda. Reproduzir moedas é inflacionar. Inflação é roubo porque confisca o valor de compra da moeda.”

    Essa confusa noção de valor sugere que espaços de leitura em livrarias são criminosos? Bibliotecas são os bancos centrais no ambiente intelectual? Deveriam os autores de livros buscarem a proibição desse tipo de compartilhamento de informação ou a “devida contrapartida” existe nesse caso? Vejam, portanto, o quão incompleta é essa definição.

    Prezado Guilherme,
    Meu nome é Roberto Rachewsky. Sou o autor da frase que você critica como sendo confusa. Me permita então esclarecer respondendo aos seus questionamentos.Em primeiro lugar, devo dizer que muitas vezes o objeto mesmo sendo claro e lógico para uns, pode parecer confuso para outros pelo simples fato de que o entendimento da realidade depende de um ato volitivo do ser humano, muitas vezes tentado, mas nem sempre realizado, que é o de usar a mente com racionalidade, servindo-se da lógica e do método científico para que seja possível a compreensão dos enunciados e das conclusões. Portanto, entendo que para ti, ainda seja confuso o que escrevi, como muitas coisas são ainda confusas para todos nós. Taxar minha analogia de incompleta apenas expõe que ela não foi compreendida em sua totalidade, como suas perguntas, as quais respondo agora, demonstram. Não é um crime uma biblioteca ou livraria deixar à disposição de seus frequentadores os livros que lhe pertencem. Crime ocorre caso alguém leva um livro sem o consentimento do seu proprietário, seja na forma física, quando poderia inclusive usá-lo apenas como calço para uma porta, ou seja através de uma cópia não autorizada de seu conteúdo. Bibliotecas e livrarias não podem ser comparadas a banco centrais. E aqui destaco o principal ponto a ser compreendido. Bibliotecas e livrarias são como bancos que emprestam ou comercializam, mediante determinadas condições estabalecidas por elas em parceria com os detentores dos direitos de cópia, o produto da mente humana. Mente essa que detém o direito sobre os frutos do produto por ela gerado e que ali, nesses "bancos", está ao dispor do público em troca da devida compensação. Roubar um livro ou copiá-lo sem autorização do autor é um crime pois aquele que assim age não paga ao autor ou ao seu representante a contrapartida pelo ato daquele de criar. Essa contrapartida será paga pela moeda aceita pelo vendedor, que lhe dará sustento e motivação para novas criações. Caso queira saber mais do que eu penso a respeito...robertorachewsky.blogspot.com... Lá, encontrarás inclusive, um artigo específico que escrevi sobre posições, essas sim confusas, que defendem a nihilista idéia da abolição da PI. Como o seu, o liberdade.br me tem como parceiro. Abraços, Roberto Rachewsky

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  7. Obrigado pelo comentário Roberto. Eu sei que foi você que escreveu esse comentário e inclusive postei esse artigo que escrevi no grupo para dar oportunidade de contra-argumentação por parte dos objetivistas. Na época de uma das discussões no qual estavam presentes você, o Bruno, Edu Voss, Fábio Pla, etc. eu também participei e foi o que me motivou a escrever esse texto, uma vez que você tem de confessar que naquele grupo de FB a intransigência de alguns não permite que a discussão se desenvolva de maneira satisfatória.

    Me desculpe, mas cada vez mais creio nas incoerências do objetivismo. Sei que você só teria como discordar, mas vou deixar esse assunto (e uma possível refutação mais consistente) para um momento posterior. Já acompanho os textos no seu blog há certo tempo e continuarei a fazer para que eu não perca de vista a real opinião favorável a propriedade intelectual no ponto de vista randiano.

    Mesmo o libertarianismo e o objetivismo serem bastante incompatíveis como filosofia e isso tendo de ficar claro em algum momento (coisa que muitos esquecem)o fato desermos parceiros no liberdade.br nos fazem como mensageiros da liberdade, portanto, com muitas coisas também em comum.

    Abraços,
    Guilherme.

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